Dias atrás, conversando com uma paciente sobre relacionamento afetivo, ela, um pouco desconfiada de sua relação, questionava a dificuldade de seu namorado na relação sexual, pois ela observava alguns bloqueios do mesmo em relação à essa prática. Eu perguntei a ela quais os fios que uniam os dois. Ela ficou pensativa. Não soube responder. Só falou que era bom estar com ele. O que é bom, perguntei? E ela pode lembrar o quanto riam juntos, o quanto o papo era muito bom. Pedi para ela fazer esse exercício: se a sexualidade passava por desafios, qual o possível ou possíveis fios que eram mais espontâneos e podiam ser mola para alavancar esse setor da vida? Esse poderia ser um ingrediente chave para eles: ludicidades.
Essa palavra não sai de mim. Veio assim, chegou de mansinho e criou raízes.
Em 2014, a Maria Farinha Filmes, uma produtora que existe para contar impactantes e inspiradoras histórias que provoquem transformação, lançou o documentário Tarja Branca (assistam todos os outros, são incríveis também) um manifesto sobre a importância de continuar sustentando um espírito lúdico, que surge em nossa infância e que o sistema nos impele a abandonar em nossa vida adulta. Esse filme é uma preciosidade. Não deixe de assistir. Colore a alma. Acende novos matizes. Faz nossa chama arder de novo caso ela esteja fraquinha.
Esse documentário me impactou. Inclusive tem como entrevistado Domingos Montagner, o ator que morreu no Rio São Francisco. Domingos tece um olhar muito importante sobre um aspecto da sanidade na educação dos filhos.
A redução do espaço e do tempo para brincar é letal para todos nós. No mundo infantil eu chamo de brincar e no mundo adulto de ludicidades. A capacidade de ser lúdico nas relações. Em uma sociedade mergulhada na tarja preta, podemos certamente pensar que a rota da ludicidade não tem sido sustentada e respeitada como uma valor. Desaprendemos a ação do brincar. Abandonamos a nossa pulsação de vida para agradarmos nossos pais, sermos aceitos por uma sociedade que só acredita em resultados mensurados e coíbe nossa espontaneidade através do aprisionamento de nossa auto expressão. Pensem na quantidade de crianças que estão sendo medicadas agora, por somente desejarem a pulsão de vida. A chamada medicalização da infância é a constatação de que problemas do cotidiano estão sendo deslocados para o campo médico. Isso tem demonstrado a nossa incompetência enquanto sociedade para olhar para o que realmente importa: para o ser humano e suas reais necessidades. Crianças estão rejeitando as salas de aula porque seus corpos estão clamando por experiências vivas, pela natureza, pelos animais e por adultos que estão empreendendo seus processos de cura e por esse motivo podem ser autoridades amorosas como diz a Antroposofia, movimento fundado e criado por Rudolf Steiner. Outro dia vivi uma experiência no supermercado que fiquei estarrecida. Uma menina que não devia ter mais de 2 anos, sentada no carrinho e seu pai perguntando a ela de uma maneira muito severa porque ela tinha feito certa “cara” para falar com ele. A menina, que mal sabia falar, ficou muda. A certa altura ele resolveu ligar para a avó e exigiu que ela falasse com a mesma. Ao pegar o telefone, falou: oi vó, quero falar com o vovô! Ele pegou o telefone furioso e começou insanamente perguntar porque ela tinha feito isso, porque tinha desrespeitado a avó dessa maneira. A mãe nesse momento chegou e disse porque ela era tão feia assim? Provavelmente ela só estava brincando de ligar para a avó e manifestando seus afetos pelo avô. Enfim, perplexidades com as quais diariamente nos deparamos. A ignorância que fere uma vida que acabou de desabrochar. Esse é um típico exemplo da falta de ludicidade, da não compreensão do lugar que a criança ocupa em seu, mundo mágico e simbólico.
Segundo Maria Amélia Pinho Pereira, a Péo, pedagoga, educadora e fundadora de uma escola revolucionária em Carapicuíba, a Casa Redonda, a qual tive a honra de conhecer em cursos e na própria escola, diz que o Brincar é usar o fio inteiro de cada Ser. Quando você está usando seu fio de vida inteiro, você está brincando. Sua bandeira? “Brincar é Urgente”! Quando conheci a Péo, eu fiquei fascinada. Ela acionou um registro de cura em mim e eu só queria ficar perto daquela mulher fascinante, com aquele sotaque cheio de baianidade, contando suas experiências como educadora. Isso me estruturou, reteceu uma parte fundamental de mim. Resultado: fui fazer o curso para educadores no Instituto Brincante. Sempre me senti educadora e psicóloga ao mesmo tempo. Hoje posso te dizer que me sinto muitas mais em uma só (tem uma designer de jóias dentro de mim querendo nascer nesse exato momento da minha vida. Entrei no Brincante para ter mais repertório lúdico com as crianças que eu atendia na época. Doce ilusão. Eu fui para brincar. A Péo era uma das minhas professoras lá, assim como Rosane Almeida e Antônio Nóbrega, duas referências monstros nas pesquisas da cultura popular brasileira. Eu dancei, brinquei de roda, ouvi histórias da Cris Velasco (quem puder segue ela, a Cris é uma deusa divina nessa arte). Sua criança interior vai te agradecer eternamente. Eu precisava disso para curar partes feridas da minha alma de criança que pedia para dar a mão para a minha adulta, que em suas andanças foi conhecer todas as teorias sobre autoconhecimento que ela pode, estreitar laços com a ciência para descobrir que eu precisava recuperar meu fio com a Vida. Com a Respiração. Com a minha Pulsação. Brincar nasce do corpo, não do discurso verbal. É colocar-se em movimento. No movimento da Vida, do flow. É quando a mente cessa. Quando algo “dá ruim” na minha vida sei que foi minha pulsação que parou. Tive uma doença grave esse ano que me parou, me revirou, me amedrontou. Me tirou da minha zona de conforto, me fez rever a minha vida (quando eu tinha sanidade para ouvir meu Eu em meio ao caos) e me perguntar para qual o lugar que eu, a partir de agora, iria dirigir a minha energia e atenção. Ainda estou nesse processo. O aprisionamento da pulsão leva todos nós a adoecer. Quando perdemos a ludicidade com a Vida, perdemos um pouco da nossa humanidade, a chance de conhecer as notas de sua vibração, de aprender a cantar a sua música. Em algumas tribos indígenas norte-americanas quando uma pessoa se afasta de sua essência e comete algo fora das leis da tribo, os anciãos se reúnem, chamam essa pessoa que cometeu algum delito e canta as vogais de seu nome. Cantar as vogais do nome de alguém é propiciar a ela que retorne ao centro do seu Ser. Precisamos cantar a nossa, resgatar a pulsação do nosso corpo, escolher pela Tarja Branca.